domingo, 4 de junho de 2017

O Segredo dos Flamengos. Federico Andahazi. «O padre Verani sabia que, se um espírito generoso não protegesse o pequeno Pietro, quando ele tivesse idade suficiente seria levado à casa dos mortos».

cortesia de wikipedia e jdact

«(…) O facto mais insignificante era motivo para que se criasse uma espécie de tribunal inquisitorial: se, por exemplo, durante a inspecção, um jovem deixava escapar um leve sorriso nervoso misturado com a perplexidade que a figura marcial do prior inspirava, a silenciosa fúria não se fazia esperar. Imediatamente, ordenava que todos ficassem em duas filas opostas e, passando por aquele estreito corredor infantil, examinava cada rosto, ao acaso, e escolhia um fiscal para o juízo sumário. O acusador escolhido devia indicar o culpado e determinar a pena que lhe cabia. Se o infeliz escolhido demonstrava uma atitude de cumplicidade, alegando desconhecer a identidade do responsável, então passava a ser o culpado pelo facto, e outro menino era escolhido para decidir a pena que lhe correspondia. Se o prior considerava que o castigo era muito brando e apoiado na camaradagem, então o indulgente verdugo também era acusado. E assim, condenando inocentes como se fossem culpados, conseguia que alguém confessasse o delito original. Mas os castigos antes indicados eram piedosos se comparados com o mais temido de todos, que despertava nos meninos um terror superior ao causado pela ira de Deus: la casa dei morti. Por esse nome era conhecido o velho presídio, o temido inferno a que desciam aqueles que, por seus graves delitos, eram expulsos do Ospedale. A casa dos mortos era uma fortaleza que ficava no alto de um penhasco que coroava uma montanha sem nome. Cercada por cinco muros que se precipitavam no abismo e por uma fossa de águas negras que paravam ao pé do monte, era impossível sequer imaginar um modo de fugir. De maneira que, por mais cruel que fosse o castigo, cada vez que o prior dava uma sentença para ser cumprida dentro dos muros do Ospedale, o réu soltava uma suspiro de alívio. O inspector do arcebispado parecia ter um especial interesse no jovem Pietro. Ou, dizendo de outra forma, o antigo rancor que o prior tinha em relação ao padre Verani convertia o preferido do padre em alvo de todo o ressentimento de Severo Setimio. Nem bem havia sabido da recém-descoberta vocação de Pietro, determinou que estava proibida qualquer manifestação em papéis, tábuas, telas e, principalmente, em muros, paredes ou em qualquer superfície do orfanato. E, obviamente, confiscou todos os instrumentos que servissem para a pintura. De modo que, cada vez que a irmã Maria escutava a voz do prior Severo Setimio, se apressava a apagar qualquer marca que ficasse da obra demoníaca de Pietro. O padre Verani fazia verdadeiros esforços para distrair o inspector do arcebispado, a fim de dar tempo para a religiosa limpar as paredes, esconder os utensílios de pintura e limpar as mãos do pequeno, cujos dedos sujos delatavam o crime. De qualquer forma, mesmo que o prior nem sempre conseguisse reunir provas suficientes, ele sabia que o padre Verani escondia as actividades de Pietro. Na dúvida, de todos os modos, sempre dava um castigo para o preferido do abade. O padre Verani sabia que, se um espírito generoso e piedoso não protegesse o pequeno Pietro, quando ele tivesse idade suficiente seria inevitavelmente levado à casa dos mortos». In Federico Andahazi, O Segredo dos Flamengos, L&PM Pocket, 2002, ISBN 978-852-541-357-4.

Cortesia de L&PM Pocket/JDACT