domingo, 4 de junho de 2017

O Segredo dos Flamengos. Federico Andahazi. « Vendo-se no papel, confirmou que era um homem velho. A sua vida, pensou, não era nada mais que uma sucessão de oportunidades não aproveitadas»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Naquele distante dia, quando Francesco Monterga conheceu o protegido do abade, não conseguia esconder o assombro, enquanto via a destreza com que o pequeno movia o carvão sobre a tela. O menino levantou-se, olhou para o velho mestre e fez uma reverência. Então o padre Verani fez um gesto discreto para o menino, apenas um movimento de sobrancelhas. Sem dizer nada, o pequeno Pietro pegou um papel, comum, não-prensado, subiu numa cadeira e, ajoelhado, chegou à altura da mesa. Cravou os seus olhos no rosto do mestre e examinou-o dos pés à cabeça. Francesco Monterga era um homem corpulento. Sua barriga avantajada ficava dissimulada em virtude de sua grande estatura. A cabeça, colossal e completamente calva, parecia de mármore. Uma barba densa e cinzenta dava-lhe um ar santo e assustador. A aparência do mestre florentino impunha respeito. No entanto, o tom da sua voz e seus modos contrastavam com aquele porte de lenhador: tinha um tom de voz levemente agudo e falava com entonação amaneirada. Seus dedos, compridos e finos, nunca paravam, e seus fortes braços acompanhavam cada palavra com um gesto redundante. Quando, por alguma razão, ficava nervoso, parecia não conseguir controlar os olhos, que piscavam de modo irritante. Nesses momentos, seus olhos, castanhos e profundos, se transformavam em duas pedras tímidas e evasivas, feitas de incertezas. E esse era o caso no momento, enquanto inesperadamente posava para o artista precoce. O menino apertou o carvão entre seus dedos pequenos e se dispôs a começar o trabalho. Com certa malícia, Francesco Monterga virou, de repente, a cabeça na direcção oposta. Pietro trabalhava concentrado no papel e eventualmente olhava para o mestre, e parecia nem se importar que este tivesse mudado de posição. A vela que queimava sobre a mesa levou mais tempo para queimar do que o menino para terminar o seu trabalho. Desceu da cadeira, caminhou até ao mestre, entregou-lhe o desenho e fez nova reverência. Francesco Monterga olhou para o desenho, e era como ver-se num espelho. Meia dúzia de riscos que resumiam com precisão as feições do pintor. Abaixo da figura, em letras românicas, era possível ler: Francesco Monterga Florentinus Magister Magistral. O coração do mestre saltou no peito e, mesmo sendo um homem de emoções comedidas, ficou comovido. Nunca havia recebido um elogio semelhante; nenhum colega se havia dado ao trabalho de fazer um retrato do mestre. Nem mesmo ele se havia permitido a íntima homenagem de um autoretrato. Era a primeira vez que via o seu rosto fora do espelho quebrado do seu quarto. E, mesmo gozando de reconhecimento em Florença, nunca o haviam honrado com o título de Magister Magistral. E agora, enquanto contemplava o retrato, pela primeira vez pensou na posteridade.
Vendo-se no papel, confirmou que era um homem velho. A sua vida, pensou, não era nada mais que uma sucessão de oportunidades não aproveitadas. Podia ter brilhado com a mesma força que Dante vira em Giotto, acreditava ter o mesmo direito ao mesmo reconhecimento de que gozava Piero della Francesca, e certamente merecia a mesma riqueza que Jan van Eyck havia acumulado em Flandres. Como o holandês, poderia ter aspirado à protecção da Casa de Borgonha ou mesmo à de Médicis, e não teria que depender do pobre mecenato do duque de Volterra. Agora, no Outono de sua existência, pensava que não havia deixado, na sua rápida passagem por este vale de lágrimas, a semente de sua descendência. Estava completamente sozinho.
Era possível dizer que o padre Verani podia ler nos olhos ausentes de Francesco Monterga. Estamos velhos, disse o abade, e conseguiu arrancar do mestre um sorriso amargo. O padre colocou as mãos sobre os ombros do pequeno Pietro e o aproximou um pouco mais do pintor. Tossiu, buscou as palavras mais adequadas, adoptou um ar circunspecto e, depois de um longo silêncio, com uma voz insegura mas decidida, disse: tome conta deste menino.
Francesco Monterga ficou petrificado. Quando conseguiu entender o sentido daquelas quatro palavras, enquanto voltava o seu rosto para o padre Verani, o seu rosto foi-se transfigurando. Até que, como se tivesse visto o próprio demónio, deu um passo atrás, num movimento espasmódico. A ruga que atravessava as suas sobrancelhas revelava uma mistura de espanto e fúria. E pensou ter entendido a razão de tanta homenagem. Francesco Monterga era capaz de passar da calma à ira em menos tempo do que tarda o trovão após o relâmpago. Nessas ocasiões, sua voz ficava ainda mais aguda, e as suas mãos desenhavam no ar a forma de sua fúria. Era isso o que querias de mim. Sacudiu o retrato que ainda tinha nas mãos, e não parava de repetir: era isso o que querias...» In Federico Andahazi, O Segredo dos Flamengos, L&PM Pocket, 2002, ISBN 978-852-541-357-4.

Cortesia de L&PM Pocket/JDACT