sábado, 12 de agosto de 2017

A Alma Trocada. Rosa Lobato Faria. «Eu, doze anos, um rasgão no peito, uma saudade de mim, a pensar em palavras, voo, regato, antemanhã, tão à espera da minha verdadeira alma, tão à deriva…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Foi a minha avó que me contou. A minha avó Jacinta, tão diferente da filha, tão alegre e directa e terra-a-terra e desbocada, que faz a minha mãe morrer de vergonha com a sua total ausência de hipocrisias classe média, a sua vitalidade, o seu apetite, os seus sapatos todo-o-terreno. A minha mãe deixou de ser uma Ferreira para se transformar, com o casamento, numa Mendonça; numa senhora como-deve-ser; num tailleur escuro de bom corte; num agasalho de peles herdado da sogra; numa frase feita; num cliché. O meu avô João Teófilo, diz a avó Jacinta, morreu do 25 de Abril. Não da democracia, nem das novas ideias que aliás professava, mas da ingratidão dos seus homens que estimava e ajudava como se fossem família. Apareceu-lhe um grupo de mal-encarados com o Custódio à frente, de caçadeira; ó senhor engenheiro, isto não é nada com vosse-mecê, mas tem uma semana para deixar a casa e o monte que isto agora é tudo da gente. É o quê, meu filho de uma grande pu…? Tratei-te sempre como se fosses um irmão, paguei a clínica da tua mulher, os estudos do teu filho doutor, dei-te dadas as belgas que agora são tuas e tu atreves-te a vir com essa conversa? Dou trabalho a uma cambada de madraços, achas que me vou embora com medo da tua caçadeira de chumbar pardais?
Eles disseram que eu era para dizer: Não, passarão! Tás-me a chamar passarão? Filho duma égua, cabrão dum corno, paneleiro de mer… Mata-me já, que daqui não arredo pé, e depois de morto só se quatro homens me levarem como diz o marquês de Pombal. Esse tal marquês não sei quem é, mas o senhor engenheiro é que é para sair de hoje a oito dias, são ordens, que eu cá por mim nem me dá jeito perder o emprego. A gente agora arretira-se em boa ordem e vossemecê pensa o que é melhor para vossemecê. E tenha muito boas tardes que a gente tem mais montes para despejar. A minha avó Jacinta saiu a porta com uma enxada e correu-os a poder de braços, com tal força de argumentação que nunca mais lá puseram os pés. O Custódio desapareceu da circulação, diz-se que levou um tiro num dos montes que andou a despejar. Mas o meu avô não se refez. Teve uma pataleta do coração (frases da avó Jacinta) e ficou desminingúido para o resto da vida. Que foi curta. Morreu em 1975, em Julho, nove meses antes de 20 de Março de 1976, que foi o dia em que eu nasci. Feitas as contas e estando os meus pais a estrear as férias de Verão num hotel do Algarve, como é suposto em pessoas do seu estatuto económico e social, houve a previsível coincidência da cópula conjugal (que só viria a repetir-se um mês depois, no final das férias, para despedida).
Como o meu avô se passou desta para melhor com a sua segunda pataleta à meia-noite e quinze, é de supor que a minha mãe, tão cumpridora dos seus deveres de esposa, estivesse de perna aberta a receber no seu casto seio a semente de mim na hora em que seu pai desencarnou. Foi nesse instante que me trocaram a alma.
Um rasgão no peito, uma saudade de mim. E a minha mãe para sempre com aquele remorso (ela considera que fazer-me foi uma coisa suja) a imaginar, logo à partida, formas de se redimir, e a primeira, assim que lhe comunicaram que tivera um rapaz, foi pôr-lhe o nome do morto recente, o meu pai achou Teófilo mais carismático que João Teófilo, pois bem, deixaram cair o João, mas a homenagem ao finado era inevitável. Teófilo Deus, pois claro. Nem repararam que Teófilo quer dizer o que ama Deus (o meu pai é economista), só faltou porem-me Teófilo Amadeu e lá carrego eu este nome em duplicado, eu, que nem sou religioso e não é para contrariar a minha mãe. É porque no dia em que acreditar que há um Deus tenho de lhe pedir contas da minha alma trocada e duvido que ele saiba responder-me.
Ao contrário do que diz a Natália Correia, raramente encontro relação entre a pessoa e o seu nome, essa ligação misteriosa e premonitória, imaginem, a minha mãe chama-se Generosa (Geni para disfarçar). Punham-me no Alentejo quando iam viajar, só os dois, felizmente nunca se lembraram de me levar, tudo o que viajei foi por minha conta e risco, já adulto, e tudo o que não viajei foi aprendizagem de mim e do universo, foi o silêncio, os cântaros a beberem avidamente das fontes, o recolher do rebanho, um cão com alma de leader, um pássaro tardio num desenho de flecha, o meu coração inquieto, uma pedra fechada na palma da mão. Em contraluz, a Maria vinha devagar, menino Teozinho está a merenda servida, a avozinha, já sabe, mandou fazer um bolo grande de chocolate por sua causa e agora quer que o vá comer com ela, sempre alegre a minha senhora, sempre alegre apesar de tudo, da falta que lhe faz o avôzinho, da morte do seu tio Emílio na guerra de África, da sua mãezinha que, com sua licença, não lhe passa cartão, sempre armada em fina e em desocupada das que não têm tempo para nada, nem para pegar num telefonezinho, salvo seja, e perguntar a mãe se está viva, vá o menino ter com ela à sala que já lá levo a bandeja, fiz salada de frutas, vai gostar.
Eu, doze anos, um rasgão no peito, uma saudade de mim, a pensar em palavras, voo, regato, antemanhã, tão à espera da minha verdadeira alma, tão à deriva, a agarrar-me como um náufrago à minha fatia de bolo de chocolate, a pô-la no prato, a cobri-la de salada de frutas, mais pêssego que pêra, dois cubinhos de melão e por fim uma ginja em calda, tão bonita, mas que afinal me enjoa e me faz arrepender. É fácil conversar com a avó Jacinta. É ela que me conta a história, que considera hilariante, da minha concepção, do meu nascimento, a Generosa a tapar-se toda para amamentar, e a avó a lembrar-se de como expunha, às vezes ao sol, os seus belos peitos, fartos de leite, para alimentar os filhos, nada mais belo que a maternidade, a assunção do corpo, a verdade da pele voo, regato, antemanhã. Lanchaste bem? Comi de mais, avó». In Rosa Lobato Faria, A Alma Trocada, Edições ASA, Autores Contemporâneos de Língua Portuguesa, Porto, 1a edição, 2007, ISBN 978-972-415-283-7.

Cortesia de ASA/JDACT