domingo, 10 de setembro de 2017

A Tentação de D. Fernando. Jorge S. Correia. «… o pensamento diz-me que falta razão para tanto sigilo: será o rei o embrulhado? Dormirá? Nah! Nem morto! Alguma coisa lhe aconteceu»

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O fim como princípio de tudo
Morre o corpo fica a fama
«(…) Já perto da margem, engasgado por tanta expectoração, Fernando transmite aos companheiros de viagem a ideia de que não é capaz de chegar ao paço. Cospe as entranhas para a água escura do rio, baba-se, suja a roupa imaculada, contorce-se, até que os suores dão razão ao paradoxo que é a sua vida agora: em vez de arrefecer aquece. Não chego a Lisboa, mestre Gil..., palavras desanimadas que saíram da garganta do rei quase sem som. Chegará, senhor. Deus há-de acompanhá-lo muito para lá da cidade, compôs o mestre em palavras de sentidos diversos. Muito para lá, dizes bem, assentiu o rei. Perguntai aqui ao bispo Martinho onde fica o Além, que ele logo vos dirá. Não me referia a outra coisa, senhor, que não fosse ao vosso bem-estar na Terra. Os mistérios do Céu não são comigo. Pois não, eu sei. Por isso é que vos disse para falardes ao bispo. Amparado pelos aios, algum ânimo permitiu ao rei sair pelo seu pé da barca, mas já não foi capaz de galgar o degrau da carroça que o esperava e menos ainda de sentar-se no assento que lhe deveria caber. Viera desde Almada deitado até ao cais em Cacilhas, deitado entrara no batel, voltava a não ser capaz de se manter hirto. Mais uma vez, desarticulado, jogou-se sobre as almofadas que o protegiam das tábuas rijas da carreta e ali ficou tapado com a pouca vida que ainda reservava.
Mansa a noite, sossegada a cidade, o pequeno cortejo, em vez de subir pela Porta do Mar, avançou na direcção da Porta do Ferro, nas imediações de onde o Falcão estava, confirmando o palpite inicial do taberneiro. Para onde irão? Quem virá ali? Na dúvida, o espreita recuou num salto para lá da Porta do Ferro, um pouco mais acima, já quando a rua se alarga na direcção da calçada da Sé. Quando a comitiva ultrapassou a Porta do Ferro e começou a subir na direcção do Largo de Santo António, um misterioso vulto escondido na noite escura espreitava com os olhos que Deus lhe deu os movimentos de tão suspeitoso acompanhamento. O Falcão, como uma sombra, viu passar primeiro o pregoeiro, depois um cavaleiro mais apessoado, um e outro anunciando penas para quem desobedecesse ao pregão real. Esperou. Os arautos já pouco lhe interessavam. Tenho cá um pressentimento…
Assim que o cortejo desembocou ao fundo da rua, o Falcão firmou o olhar na noite escura, insistiu, mas o que viu foi gente em cima de animais em passo lento, tão desanimada que mais parecia um enterro: é isso, é um enterro. Alguém de nome morreu! Terá sido o rei? Aos poucos, enquanto a procissão se definia, distinguiu de entre vários cavaleiros o chanceler, por o ter visto em outras ocasiões junto do rei, alguns cavaleiros que conhecia de vista, dois deles seus fregueses, mestre Gil, que de vez enquanto entrava pela porta das traseiras à procura das protegidas de Mariamem, e o bispo que há tempo lá não entrava, mas que fora um cliente dos melhores. A razão fundamental continuava por descobrir. Mesmo à sua frente, a pouco mais de quatro ou cinco passos, lá vinha devagarinho o cortejo macabro, pois não lhe saía da cabeça que tudo aquilo não era mais do que o transporte de um morto. Assim que ficou com as traseiras da carroça no seu ângulo de visão, com vista para o bispo Martinho, reparou que junto dele havia uma coisa embrulhada que não identificou logo: que raio de embrulho será aquele? Na forma..., na forma parece uma pessoa! Mas porque virá alguém embrulhado? Tê-1o-ão matado?
Para um espertalhão que de certo modo vivia de expedientes, a dúvida desacertava os ponteiros que tinha dentro da cabeça. Queria juntar as coisas, retirar delas algum lucro, mas tudo o que lhe vinha ao juízo não fazia sentido. Assim, em vista de tanta perplexidade, optou por outra análise: ora deixa-me cá ver quem vem no cortejo. Um é o chanceler, já disse. Na frente vão dois fidalgos de preço. Os outros não contam, é arraia-miúda que frequenta a porta da frente da taberna; dentro da carroça vai mestre Gil e o bispo Martinho; juntando estes, mais o embrulho, o pensamento diz-me que falta razão para tanto sigilo: será o rei o embrulhado? Dormirá? Nah! Nem morto! Alguma coisa lhe aconteceu». In Jorge Sousa Correia, A Tentação de D. Fernando, Clube do Autor, 2017, ISBN 978-989-724-344-8.

Cortesia de CdoAutor/JDACT