sábado, 7 de outubro de 2017

O Retrato do Rei. Ana Miranda. «Tolices. O ouro traz benefícios, disse Fernando, ao entrarem na sacristia. Numa banca brilhava um crucifixo. O padre sentou-se no faldistório, sobre o estofo rasgado»

Cortesia de wikipedia e jdact
O contrato da carne
«Deus criou a luz, disse frei Francisco Meneses, acendendo uma vela. As águas, o firmamento; a terra e a relva. A sua voz ecoava na igreja vazia. Criou o sol, a lua, as estrelas. Uma mariposa acercou-se da chama e ficou rodeando-a, numa atracção fulminante. Criou os animais estúpidos, olhou o homem a seu lado, e o homem. Sorriu. Que não deixa de ser um animal estúpido. Flexionou os joelhos, reverente; fez o sinal-da-cruz. Virou-se para o seu interlocutor, sem dar as costas para o altar. Fernando Lancastre, o governador da capitania do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas do Ouro ouvia-o, silencioso. Criou um jardim paradisíaco para que os seres ali habitassem e plantou a árvore proibida, continuou o trinitário. E disse ao homem: do fruto do conhecimento não comerás. Se comeres, morrerás. O padre e o governador caminharam pelo corredor da igreja. A espada de Fernando às vezes arranhava o chão, emitindo ruídos estridentes. Esta é a mais idiota de todas as histórias, disse frei Francisco. A mais mentirosa. O conhecimento não traz a morte. Todos os seres morrem, sejam árvores, papagaios, macacos, zebras. Ainda sereis queimado por vossas estultícias, disse o governador. O conhecimento traz apenas a infelicidade, apenas isso. Mas prefiro ser um desgraçado entendedor que uma mula aventurosa. Como eu ia dizendo, Deus fizera um rio que saía do Éden para regar o jardim do Paraíso. Num braço desse rio, chamado Pisom, o que rodeava a terra de Havilá, havia ouro. O ouro refulgente. Na sua infinita malícia, Ele nada avisou ao homem. Hic jacet lepus. Poderia aquele reino ignorante entender latim? Ali se escondia a lebre, completou.
Tolices. O ouro traz benefícios, disse Fernando, ao entrarem na sacristia. Numa banca brilhava um crucifixo. O padre sentou-se no faldistório, sobre o estofo rasgado. Benefícios? A poderosa força maléfica do ouro cria mais ruínas que fortunas; todos se tornam credores e devedores; a ambição supra os demais sentimentos. A ilusão da opulência e do poder destrói a ética. Pelo ouro, os justos cometem injustiças, os sagazes tornam-se parvos e os idiotas brilham na retórica. Pegou um cálice dourado. Olhou o reflexo de seu rosto, distorcido, no metal. E para que os homens sonham com o ouro?, continuou o padre. A realização dos seus sonhos está perto, entre pedras de cascalho, ali, entre rochas e penedos, a um passo, basta estender a mão para atingir o zénite. O zénite do quê? A visão dos seus sonhos evapora-se como um resto de chuva em dia de sol. E se no meio de uma imensa devastação alguém se decide a perguntar: porque, mesmo, queremos o ouro? Por que sonhávamos? Ninguém saberá responder. Mas eu vos digo: para reinar, para comer e para fornicar. É isso que os homens desejam, e nada mais. Reinar, comer, fornicar.
Fernando mantinha-se silencioso. Considerava aquele padre um desleal prevaricador, soturno, crápula, e tinha problemas demais para perder tempo com filosofias esdrúxulas e blasfemas. Além disso, percebia aonde frei Francisco queria chegar, com aquelas ruminações inconvenientes. Ia pedir-lhe a prorrogação do monopólio da venda de carne nas Minas do Sertão. Poucos, disse o padre, elevando o indicador, são os que contam o trágico fim de Jasão. Ele perdeu tudo o que tinha. O mesmo navio que o levara de encontro ao velocino de ouro o esmagou. Este é o destino de todos os heróis. Frei Francisco suspirou. Tinha nariz longo quebrado na metade, sobrancelhas juntas. Estas rugas, disse o frei, oferecendo uma visão completa do seu rosto, são as únicas condecorações que recebi pelos meus esforços. O próprio Midas esteve a ponto de morrer de fome, e nasceram-lhe duas orelhas de burro». In Ana Miranda, O Retrato do Rei, Editora Schwarcs, Companhia das Letras, 1991, ISBN 978-857-164-190-7.

Cortesia de ESchwarcs/CdasLetras/JDACT