quarta-feira, 1 de novembro de 2017

A Princesa Guerreira. Barbara Erskine. «Quem sabe se não o induzira em erro. Suspirou, numa profunda lástima. Era um rapaz com tanto potencial, talhado para as notas mais altas»

jdact

«(…) O Will não tem nada a ver com isto, Dan, respondeu, retalhando com as mãos um lenço de papel. Tu discutiste com ele na discoteca. Eu vi-vos. Não foi uma coisa séria. A mim, pareceu-me bastante sério. Dan semicerrou os olhos. Fez-se silêncio. Por que se separaram tu e Will? Isso não é da tua conta, Dan. Não quero falar sobre isso. Ele estava bem furioso quando tu saíste, depois da festa. Pode ter-vos seguido, a ti e a Ashley, até aqui a casa. Seguiu-se mais um longo silêncio. Foi Ashley! Ashley fez alguma coisa!, murmurou Dan, por fim. O sacaninha! O que aconteceu, Jess? Nada. Cerrou os punhos. Esquece, Dan. De novo, uma pausa. Jess recordou a imagem de Ash, ao pé das grades, perto do portão da praça. A vénia. O ar altivo com que olhara para cima, para a janela do seu apartamento. O beijo soprado. Tentou tirar a imagem da cabeça, mas ela recusava-se a sair. É verdade que tinha dançado com ele. Gostava dele; encorajara-o. Quem sabe se não o induzira em erro. Suspirou, numa profunda lástima. Era um rapaz com tanto potencial, talhado para as notas mais altas. Se o acusasse, e estivesse enganada, se não tivesse sido ele, o inquérito da polícia destruí-lo-ia por si só. Ash nunca mais se veria livre desse estigma.
Então, já tomaste a tua decisão. Dan desistira de fazer perguntas. Vais mesmo partir. Observava-a tão atentamente que ela receou que lhe estivesse a ler o pensamento. Jess aquiesceu. Ele continuou a observá-la ainda alguns segundos, em silêncio. Muito bem. Ajudarei a resolver as coisas com Brian. Parecia ter resolvido não discutir mais. Não te preocupes. Vais ter uma excelente carta de referências, eu próprio me encarregarei de a escrever, se é isso que queres. Vendo o lado positivo da questão, talvez arranjes um lugar formidável em algum colégio privado feminino. Mesmo à tua medida. Dan deu uma gargalhada curta e crua, e ela franziu o sobrolho ao súbito rancor daquele tom de voz. Tira o Verão, Jess, prosseguiu. Esquece o que te perturbou tanto, seja lá o que for, e recomeça no Outono! Inclinando-se para a frente, tornou a dar-lhe uma palmada amigável no joelho. Seja o que for, Jess, ultrapassa isso. Não penses no assunto. Põe tudo para trás das costas.
Stephanie Kendal estava sentada à sua mesa de trabalho a pintar motivos num tabuleiro de pequenas canecas profusamente adornadas, prontas para o esmalte final. Levantando os olhos na direcção da janela, franziu o sobrolho. A luz do Sol desaparecera do jardim. Sombras compridas atravessavam o relvado, direitas ao estúdio onde ela se encontrava, a ouvir rádio. Inclinando-se para a frente, desligou o aparelho. No silêncio súbito, ouviu o canto longínquo de um tordo, entrando pela porta aberta. Era ligeiramente mais baixa, mais roliça e mais velha do que a irmã, Jessica, mas entre as duas mulheres havia um inequívoco ar de família, herdado da mãe. De Aurelia Kendal, também lhes viera o amor pela Literatura, o talento artístico, o charme e a liberdade de convenções. Em resposta à sua decisão de viver como uma ermitã numa pequena casa de campo perdida nos Baixos Pirenéus, quando não estava a correr mundo na qualidade de jornalista e autora de guias de viagem, as duas filhas tinham gravitado para o interior de Londres, depois da licenciatura e da escola superior de educação. Jess ainda lá estava. Stephanie cedera, virara costas às luzes da ribalta e passara o seu último divórcio naquele sonho galês: uma pequena quinta de montanha, não muito longe do lugar onde a mãe chegara a viver, antes de ter decidido trocar as colinas do País de Gales pelas cordilheiras francesas». In Barbara Erskine, A Princesa Guerreira, 2008, tradução de Catarina Almeida, Grupo Planeta, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2009/2010, ISBN 978-989-657-113-9.

Cortesia de PManuscrito/JDACT