sábado, 11 de novembro de 2017

A Sibila. Agustina Bessa Luís. «Ela conhecia Francisco Teixeira, a quem as irmãs, criaturinhas espigadas e ladinas, celebravam muito, corando só de lhe pronunciar o nome»

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«(…) Joaquina Augusta nascera nessa mesma casa da Vessada, setenta e seis anos antes. Era uma menina de aspecto pouco viável, roxa, moribunda, e que apresentava no pulso esquerdo uma mancha cor de sépia, motivada pelo facto de sua mãe ter sido salpicada de fígado de porco, por ocasião duma matança, estando ela nos primeiros tempos de gravidez. Era a segunda filha que vingava num matrimónio de sete anos, porque os primeiros concebidos não atingiam o termo num organismo violentado por desesperados jejuns, angústias de mulher jovem que tem por marido o maior conquistador da comarca. Pois a senhora Maria da Encarnação, escolhida num alfobre de raparigas da casa do Freixo, delicadinha, esguia, os cabelos sobre as fontes, uma cintura muito torneada pelo cinto de cetim, como ficou de moda para todas as mulheres da família, ligara-se a um homem mais velho vinte anos e do qual diziam as avós da freguesia, em tom bonachão e um tanto cúmplice, que tinha pedrinha de encantar. Era mesmo. Casara à socapa, numa madrugada em que a noiva, depois da cerimónia, fora retomar o seu lugar no lar paterno, iludindo assim por algum tempo mais o cortejo das desprezadas, entre elas as próprias irmãs. Francisco Teixeira era, de facto um galã feliz. Possuía ele casa de lavoura e bens ao luar de sobejo interesse, e que administrava mal, pois era feirante por índole, amigo de gozos, vida larga, gostando de presumir grandezas, generosidades e essa bazófia genuína, mais feita de discrição do que de alardes pimpões. Se havia homem pronto a vingar afrontas de compadrio, a ensarilhar o pau, a varrer testadas, fazendo acudir a troa entre o escabrear do gado e os gritos das velhas que se esgueiram de rastos, salvando na abada do avental o que restasse do gigo dos ovos, era esse Francisco Teixeira. Tipo pequeno, de muito nervo, prudente e conciso de falas, ciente do prestígio das suas suíças loiras junto das mulheres, para quem o tisnado de árabe merecia descrédito em coisas apolíneas, assim era ele. Com nove anos, Maria da Encarnação apaixonara-se por ele, uma tarde em que, de passagem pelo lugar, se vira impedida de pular um córrego avolumado pela invernia: a água espumejava precipitando-se num barranco entre duas arribas, sobre as quais vergavam os lódãos, muito batidos pelo vento. Que fazes aqui, menina? Tu de quem és?, disse Francisco Teixeira, que passava, a gola picarça do capote afogando-lhe meio rosto. Maria respondeu com uma vozinha tímida, porém seca e rebelde: sou do Freixo... E tentou apear-se do muro, cuja interrupção oferecia uma espécie de degrau que permitia o acesso às veredas na margem dos campos. O moço disse, serenamente, quase severo: é já de noite: eu vou levar-te a casa. Eu conheço o teu pai, e sempre lhe vou perguntar se isto são horas de deixar andar por fora uma mulher como tu. Cantés!, bradou Maria, elevando a voz, para que o fragor da torrente que gorgolejava entre as lajes brancas não lhe sumisse as palavras. Ela conhecia Francisco Teixeira, a quem as irmãs, criaturinhas espigadas e ladinas, celebravam muito, corando só de lhe pronunciar o nome. Lado a lado, caminhavam juntos naquele crepúsculo que a chuva fazia alvacento, brilhando ao cair, espelhando nos charcos, nas lamas, nas folhagens. O homem falava, e a sua voz era cheia duma ternura irónica que comunicava no coração da criança um desejo de esforço e uma emoção quente, de aliança, de gratidão. Chegaram, e disse Francisco Teixeira, antes de se despedir, enquanto do portal iluminado pelo fogaréu do lar o espreitavam as moças, mordendo-se de risos impulsivos, incontroláveis e maganos: ora acautelem-me lá esta rapariga, que é com ela que eu vou casar... Adei... Adei..., sublinhou o pai, que assomara também, cambaleando um pouco sobre os tamancos tachados e que o faziam parecer alto, com enormes pernas anquilosadas, como as figuras do Greco. Houve grandes risadas, e Balbina, a mais velha das irmãs, correu de repente para Maria, a quem encheu de mimos e desvelos, palpando-lhe as roupas molhadas, desnastrando-lhe as trancinhas hirsutas, para que os cabelos enxugassem». In Agustina Bessa Luís, A Sibila, 1954, Relógio d’Água, 2017, ISBN 978-989-641-747-5.

Cortesia de Rd’Água/JDACT