sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Até que o Amor me Mate. Maria Lopo Carvalho. «Este amor que vos tenho, limpo e puro, de pensamento vil nunca tocado, em minha tenra idade começado…»

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«(…) Não fiques assim, Ana, não é caso para tanto!, disse Bento, arrancando-me ao redemoinhar das memórias e dando à voz um tom terno e paternal. O moço, ainda que doidivanas, é senhor de um saber refinado. Acaso cuidavas que Luís Vaz serviria na ilustre Casa de Linhares se não mostrasse um conhecimento profundo do latim, das línguas vivas e das ciências modernas? Como pode ele ter tantos saberes se pouco assistiu às lições? Alguma coisa não está conforme, Bento. Meu cunhado, que era de réplica pronta, atirou-me com uma escusa que não me persuadiu: escuta, comadre. Luís Vaz não era moço de frequentar as lições dos mestres, mas, como te disse, não foram raras as vezes que o vi horas a fio na livraria da universidade. Dizem que ao tocar das matinas já por lá andava perdido nas leituras. Clássicos e modernos, de tudo tomou conhecimento. Quando o inquiria sobre os propósitos de semelhante assiduidade à livraria e tão pouca às lições, a resposta era sempre a mesma: é o tédio, tio Bento, para quê ouvir dos outros o que por mim só posso aprender? E o saber de experiência feito, tio Bento, pois não achais que, conjugando experiência e engenho, mais se alcança? Luís Vaz era avesso às rotinas da universidade, folgava com a rapaziada até altas horas em lugar de se recolher e, pela madrugada, depois de uma noite em claro, rumava à livraria. Bastas vezes o vi eu, já o Sol ia alto, a cabecear em cima da estante.
Em nada daquela narrativa podia eu achar consolo. Estava o tio a pagar-lhe os estudos e andava o rapaz a vaguear noite dentro? Não te inquietes, Ana Sá. Estou seguro de que a condessa de Linhares o há-de domar. Tenho por certo que no Palácio de Xabregas vai Luís Vaz aprofundar os seus saberes. A livraria dos condes é de tal sorte valiosa que muito o irá deleitar. Ele que tenha tino e lá se fará erudito. Queira Deus que assim seja! Tinha mais inquietações e não podia ir-me dali sem respostas. E uma tal de Leonor, mestre Bento, alguma vez ouvistes falar de semelhante? E a prima Isabel? Tantos versos lhes vi dedicados... Insisti, porque era coisa que me inquietava. Luís Vaz deixara amores dependurados nas margens do Mondego; iria tentar recolhê-los? Iria a saudade recambiá-lo para Coimbra, abandonando a casa dos condes? "Veja-me estas rimas, mestre Bento, posso não ser erudita, mas percebo o bastante para lhes ver grande sentimento.
Rebusquei nas dobras do saio e estendi-lhe o caderno com a caligrafia apaixonada e inconfundível do meu Luís Vaz. Por ali escorria, em letra miúda, um não-mais-acabar de cantigas, romances, vilancetes, em redondilhas de cinco e sete sílabas, já quase fora de moda, e sonetos, sobretudo sonetos no novo estilo tão em voga.

Este amor que vos tenho, limpo e puro,
de pensamento vil nunca tocado,
em minha tenra idade começado,
tê-lo dentro desta alma só procuro.

Ora, comadre, Leonores, Margaridas, Rosas, Beatrizes, Isabéis..., parece que as estou a ver a passarem-me assim de perfil, todas igualmente deliciosas! Deitou um olhar fugidio às rimas, devolvendo-me logo o caderno. As moças de Coimbra são como as cerejas: colhe-se a primeira, tem-se logo vontade da segunda e da terceira... Difícil é parar. Sabes hem que Luís Vaz é um mancebo que atrai os olhares e as atenções. Que todos os males sejam esses, comadre..., pois pecará carnalmente e tornará a pecar, se for só com essas moças e se for cumprindo com a confissão não virá daí mal ao mundo». In Maria João Lopo Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-488-6.

Cortesia de OdoLivro/JDACT