domingo, 10 de dezembro de 2017

Uma Praça em Antuérpia Luize Valente. «O céu cinzento e a chuva fina escondiam os raios de sol do primeiro dia do novo ano, quase novo milénio. O mundo não tinha acabado»

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E assim declaro que darei, sem encargos, um visto a quem quer que o peça. O meu desejo é mais estar com Deus contra o Homem do que com o Homem e contra Deus. In Aristides Sousa Mendes, 1940

«Há uma saga que ainda não foi contada sobre a Segunda Guerra Mundial: a história de duas irmãs portuguesas, Olívia e Clarice. Olívia casa-se com um português e vai para o Brasil. Clarice casa-se com um alemão judeu e vai morar em Antuérpia, na Bélgica. Ambas vivem felizes, com maridos e filhos, até que a guerra começa e a Bélgica é invadida. Para escapar da sombra nazi que vai devorando a Europa, a família de Clarice conta com a ajuda de Aristides Sousa Mendes, o cônsul que salvou milhares de vidas emitindo vistos para Portugal, em 1940, enquanto actuou em Bordéus, França. A família recebe o visto mas, ao chegar à fronteira de Portugal, um destino trágico à espera... Destino que vai mudar e marcar a vida das irmãs para sempre, por causa de um segredo que só será revelado sessenta anos depois.
O céu cinzento e a chuva fina escondiam os raios de sol do primeiro dia do novo ano, quase novo milénio. O mundo não tinha acabado. Um grito ou outro na rua, a cantoria e as risadas na volta para casa, copos, latas e garrafas de champanhe encostados no meio-fio eram o máximo da desordem naquele sábado pós-réveillon em Copacabana. Do alto de seus oitenta e três anos, do alto da sua cobertura, no lugar mais cobiçado para acompanhar a virada, Olívia sentia-se pequena. Eram seis da manhã e ela não tinha pregado o olho. Pouco depois das duas da madrugada ela fora para o quarto, dando o sinal mudo de que era hora de todos partirem. Vinte minutos depois, a neta entrara no quarto e Olívia manteve os olhos fechados. Instantes depois, o barulho dos copos recolhidos e o clique da porta foram a senha para que se levantasse e fosse para a varanda, e ali continuou até o dia amanhecer.
Lembrava-se que, no momento exacto, quis que o mundo acabasse. O champanhe foi estourado como despedida do ano, despedida do filho. Beberam à troca de saudações triviais de feliz ano-novo e a palavras vazias que acompanham os momentos de profunda tristeza. Nos últimos vinte anos, desde que Olívia se mudara para a cobertura do anexo do hotel mais glamouroso da cidade, o apartamento vinha sendo o ponto de encontro da família nos fins de ano. À medida que se aproximava o fim do milénio, cresciam as expectativas e apostas sobre o réveillon. Olívia jamais pensara que passaria dos oitenta para ver aquele dia. Muito menos que Luiz Felipe não estaria ali. A urna com as cinzas descansava sobre o aparador, ao lado da fotografia dele, ainda bebé, com o pai, António. Em alguns minutos, cumpriria seu último desejo. Avó, a senhora tem certeza de que quer ir? A pergunta do neto mais velho foi seguida de silêncio. Ele insistiu: avó, de repente a gente deixa o dia clarear, vamos de manhã, vai ser mais tranquilo.
Olívia acariciou a urna e respondeu com um sorriso firme nos lábios. Tom, lembra–se como o seu pai se negava a ver os fogos aqui de cima? Vinte para a meia-noite e lá ia ele com a garrafa de champanhe, os copos de plástico... Feliz ano-novo, mãe, que o lugar deste português é lá em baixo, no mar de gente! Pois é para lá que nós vamos. Agora! Agora, Olívia permanecia ali, sentada na varanda, no primeiro dia do ano. O mundo tinha acabado, sim, não é justo ver um filho morrer sem poder fazer nada. Ela pegou na foto que costumava levar sempre junto ao peito. Olhou, então, demoradamente, a mulher, o homem, a criança. Nem ouviu o ruído da porta abrindo, nem os passos leves no tapete. Tita, a neta, que também se chamava Olívia, entrara devagar. Ela também não tinha pregado o olho a noite toda. Não era a morte do tio que tirava o sono de Tita, era a morte do sonho. Porque para algumas mulheres engravidar era tão difícil? Tita perdera o primeiro bebé, depois o segundo e agora o terceiro. Mantivera a gravidez em segredo já prevendo o fracasso. Só a avó sabia. Tita precisava contar para ela, precisava dividir a sua dor, embora soubesse que estava sendo egoísta. A avó acabara de perder o filho. Ela também». In Luize Valente, Uma Praça em Antuérpia, 2015, Saída de Emergência, colecção A História de Portugal em Romances, 2015, ISBN 978-989-637-844-8.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT