quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

A Instrução dos Amantes. Inês Pedrosa. «Mas daquela vez, há exactamente cinco meses e seis dias, o João fizera-lhe uma festa no queixo e dissera: tão querida…»

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«(…) O teu pai só pensa nele, Filipe Manuel, vê se te convences disso. Ele nem os teus estudos paga, filho. Sou eu que me mato para tu andares a chumbar anos a fio, e tu só pensas no homem, que Deus Nosso Senhor me valha! O homem, o homem. Até parece que não foi ele que me fez. O que é que tu estás a insinuar, Filipe Manuel? Nada, mãe. Só me espanta que tu, que até és bruxa, não consigas ganhar a lotaria. Neste ponto da conversa a mãe de Filipe Manuel atirava-se para o sofá a gemer, ameaçando desmaios transcendentes, e o filho abraçava-a, com pedidos de perdão e juras de eterno amor. Desde que o marido saíra de casa, a mãe de Filipe dedicara-se à causa espírita e aos espoliados do Ultramar. Afirmava-se eternamente devedora do espírito do bisavô Anselmo, que lhe aparecera em sonhos, seis meses antes do reviralho, exortando-a a sair de Lourenço Marques, porque os turras iam ganhar. O bisavô Anselmo só não lhe contara, talvez por falta de intimidade com a bisneta, que o marido havia de mandar vir, com o resto das bagagens, uma mulata vinte anos mais nova do que ela, e grávida dele. Filipe nunca quis conhecer a meia-irmã e ficava com os cabelos em pé só de ouvir falar em esquerdas ou liberdades. Almoçava com o pai no primeiro e no último sábado de cada mês, se tudo corresse bem. A maior parte das vezes, não corria: os negócios estavam difíceis, o trabalho no Partido era muito, o país mudava devagar.
Compreendes, não é, meu filho? Filipe fazia voz grossa e dizia que sim. Pensava que com o tempo se habituaria à indisponibilidade do pai, mas não conseguia, e o ódio às liberdades crescia-lhe na proporção directa da saudade. Um senhor. Filipe insistia: à uma em ponto, pai. Não te atrases, por favor. Mas ele atrasava-se sempre. Uma e meia, desastre completo: os outros já estavam todos a almoçar, não o viam chegar no Mercedes prateado. Se ele ao menos lhe desse a mota. Filipe estava farto de andar com o capacete debaixo do braço. Dizia que era para as boleias, mas ninguém acreditava. Até no comboio para o liceu, usava o capacete em vez de livros: gastam-me o músculo, que foi feito para outras matérias. Mas precisava de grandes audiências e muita companhia para dar aplicação aos famosos bíceps. Quando o provocavam a solo, fazia que não ouvia, e estugava o seu passo largo de forcado imaginário. Contava mil e cem vezes a pega que fizera a um touro bravio, numa festa ribatejana. Esquecia-se invariavelmente de contar que o touro em questão era uma vaca escura, e sentada. Ricardo Luz era pouco dado a narrativas, e menos ainda a relatórios de feitos. Escondia o tronco rijo em camisas largas. Tinha uma vulgaríssima Honda 50. A Kawasaki 750 era do João Brito, que dormia numa cama de dossel. Os outros escarneciam-lhe a casa barroca e o dinheiro da família.
Não tens vergonha de ser novo-rico, ó Jonas? Novo-rico, com um pai que podia ser avô dele? E, calhando, é mesmo! João batia duas vezes as longas pestanas, lançava-se em voo picado sobre os difamadores e restaurava em meia dúzia de safanões a fachada da honra. Depois sacudia a poeira do blusão e compunha os caracóis acetinados numa olhadela discreta ao espelho retrovisor. Os setenta e cinco anos do pai não o incomodavam; a mãe ainda não atingira os quarenta e ofuscava qualquer garota de vinte. Adoravam-se: João e a mãe faziam um belo par. O velhote, era como se não existisse; falava sozinho, não se sabia de quê. Só se calava enquanto preenchia cheques, e a família fazia por multiplicar estes agradáveis momentos de silêncio. Então, o que é que se faz hoje? Era Radar, o anão, a pôr a voz nos bicos dos pés. Nutria uma paixão funda por Cláudia, a partir daquele primeiro instante, já lá iam dois anos. No entanto, estaria disposto a alimentar paixões igualmente fundas por qualquer outra rapariga, desde que fosse um bocadinho correspondido. E desde que a garota tivesse pelo menos treze anos. Infelizmente, a única apaixonada que recenseara festejara há pouco o décimo aniversário, usava aparelho nos dentes e era sua prima direita. Então, pessoal? O que é que se faz?, repetia o mal amado.
Ainda por cima, as pastilhas elásticas tinham-se acabado, e ninguém se sentia com paciência para ir lá abaixo ao Kuanza comprar mais. João tirou o último pedaço da boca e ofereceu-o, num gesto magnânimo. Teresa corou e aceitou. Gostava dele há cinco meses inteirinhos, com uma constância desesperada. Lembrava-se do momento exacto em que ele lhe tinha feito aquela festa no queixo. O sol transbordava os contornos do céu. João estava sentado na mota e as luvas ampliavam-lhe a forma das mãos. A luz reflectia-se nos metais da máquina, fulgia-lhe nos olhos verdes, mergulhava-o numa ilusão de celulóide. Ela roubara de casa metade de um pão-de-ló para distribuir pelo grupo. Como de costume, toda a gente devorou o bolo a troçar dela: Olha a Santa Teresa, protectora dos famintos, e coisas assim. Teresa ficava triste. Parecia-lhe que o cabelo e os olhos acompanhavam, num progressivo embaciamento, a invasão daquela tristeza. Pedia a Deus milagres cada vez mais pequenos e profanos: cinco centímetros a mais de altura, dez centímetros a menos de largura, um ondeado, por ligeiro que fosse, no cabelo. Dava prendas para se tornar famosa no coração dos outros, mas os outros eram rapidíssimos a desmontar-lhe o engenho, numa gargalhada. Queria alcançar a sublime vulgaridade de Cláudia, que ganhava sempre. Mas daquela vez, há exactamente cinco meses e seis dias, o João fizera-lhe uma festa no queixo e dissera: tão querida». In Inês Pedrosa, A Instrução dos Amantes, Publicações dom Quixote, 1997, ISBN 978-972-200-972-0.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT