quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

A Instrução dos Amantes. Inês Pedrosa. «Cláudia aparecia com uma fita métrica no bolso, para medir a cintura e as ancas das outras, por vingança. Teresa invejava-a…»

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«(…) E depois tinha ficado de boca aberta à espera que ela pusesse lá a fatia do bolo. Duas palavras bastaram para disparar nela esse passatempo terrível. Teresa fazia de qualquer obstáculo um pretexto para o mistério, uma ponte de glória para a solidão. Apaixonara-se já por quase todos os rapazes do grupo, um a um e para a eternidade. Estavam muito encostados uns aos outros, magicando em alternativas confortáveis ao gelo da tarde, quando se ouviu aquele ruído seco, e depois o grito da senhora que vinha do café. Foi no dia seguinte, no funeral de Mariana, que Cláudia se tornou outra. Dinis parou junto dela em frente da campa aberta e ela quase desmaiou. Era um odor de terra húmida e de sal e de chuva e de rosas queimadas em álcool. Pareceu-lhe que era a morte, aquilo que assim a entontecia. Nem sequer lhe viu o rosto. A morte é a única testemunha da paixão. Tem ciúmes dos corpos e queima-os devagar. Quando os corpos se entregam ao império dos seus lumes é a morte que os ilumina. Depois rouba-os, como se perpetrasse um crime perfeito, esquecendo-se de que os corpos deixam traços. Escusado será dizer que nenhum destes pensamentos turvou, por um momento que fosse, a cabeça de Cláudia. Mais tarde houve quem comentasse que lhe faltava naquela época idade e experiência. A própria Cláudia gosta de repetir que nessa altura era demasiado jovem e irreflectida, como se a vida nos concedesse um prémio de serenidade em troca dos nossos perdidos quinze anos. O que faltou a Cláudia naquele instante parado no tempo foi o que sempre lhe faltaria: esse elementar instinto de defesa que disfarçamos sob o nome de razão. Há seres assim, irremediavelmente unos, incapazes de isolar partes dentro do seu próprio corpo e de as estruturar como castelos autónomos e armados.
O comum dos mortais reage à queda de uma das suas praças-fortes redobrando o armamento da outra. Os monumentos espalhados pelas cidades evocam os que levaram esta técnica aos limites da perfeição humana. Em menor ou maior grau, quase todos recebemos no sangue uma capacidade de separação interna que nos habilita para as obras da sobrevivência. Cláudia não sabia dessa distinção nem de distinção nenhuma. Deixava correr os dias e precisava do espelho para se entender como peça solta. As inquietações da literatura faziam-na rir porque lhe pareciam artificiais. A beleza e a ausência de imaginação punham-lhe laivos de mulher fatal. Desde que Ricardo Luz a elegera rainha ela convencera-se simplesmente disso mesmo: sou uma mulher fatal. O seu corpo era a tradução perfeita das linhas ideais. Nos dias em que o pai lhe batia, Cláudia aparecia com uma fita métrica no bolso, para medir a cintura e as ancas das outras, por vingança. Teresa invejava-a, Isabel admirava-a, e a fusão destes dois sentimentos criara-lhe uma aura que a tornava segura do mundo. Todos os rapazes sonhavam, obviamente, com ela. Cláudia via nesse excesso de sonho a prova física da sua inteira realidade. O cérebro de Cláudia pensava tanto como os seus braços, o seu estômago ou o seu coração. Formava uma unidade resplandecente. Nada a podia proteger da fissura sem centro que a mudou de uma só vez, como um abalo sísmico. Nem lhe viu o rosto. Aliás, Dinis não tinha propriamente o tipo de semblante que se recordasse. Vira-o já centenas de vezes, de passagem, e não saberia dizer de que cor eram os olhos do irmão de Isabel Marta. Havia fotografias de James Dean nas paredes do quarto dele, mas Isabel dizia que o Dinis nascera velho, porque passava a vida a ir à Gulbenkian ver filmes a preto e branco, muito antigos. Ou então fechava-se no quarto a ouvir música clássica. O grupo via-o passar, muito sério, com uma pasta de cabedal na mão, e só não o hostilizava abertamente por respeito para com Isabel.
Nessa mesma noite, depois do funeral, Cláudia adormeceu a tentar lembrar-se de um qualquer pormenor visual que a sossegasse, e não conseguiu mais do que a memória daquele cheiro pesado e quente. Decidiu que a culpa era do corpo da morta, da chuva sobre a terra, do cansaço dela, e entrou pelo sono a sonhar com perfumes num rapaz que tinha a cara do namorado dela e que a beijava doidamente sobre a relva molhada. Mas, reparando melhor, ao fundo do sonho havia o cemitério, e um ser, lá muito ao longe, agarrado a uma enorme pedra tumular em forma de ursinho de peluche. Não se percebia se aquela figura parda metida numa capa de plástico era homem ou mulher. O ser permanecia imóvel e curvo como um fantoche esquecido sobre o tempo, e olhava». In Inês Pedrosa, A Instrução dos Amantes, Publicações dom Quixote, 1997, ISBN 978-972-200-972-0.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT