domingo, 21 de janeiro de 2018

A Irmandade Perdida. Anne Fortier. «Duas silhuetas surgiram no horizonte tremeluzente. Era a hora mais clara e mais quente do dia, quando céu e terra se encontravam numa névoa prateada»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Enquanto esperava o tempo de Rebecca receber a imagem, fiz-lhe um pequeno resumo da situação, sem deixar de fora a desconfiança de James Moselane de que eu tinha sido vítima de um trote ou talvez até corresse perigo. É claro que eu não vou, mas estou morrendo de curiosidade para saber onde essa foto foi tirada, falei. Como pode ver, parece que a inscrição faz parte de uma parede maior, onde o texto se organiza em colunas verticais. Quanto ao alfabeto em si... Cheguei mais perto e tentei posicionar melhor a luminária da escrivaninha. Estou com uma sensação estranha...,mas, por mais que eu tente, não consigo... Um ruído sugeriu que Rebecca mastigava um punhado de castanhas, sinal de que estava intrigada. E o que quer que eu faça?, perguntou ela. Posso garantir que essa foto não foi tirada na minha escavação. Se alguém tivesse deparado com algo assim aqui, em Creta, eu saberia, pode acreditar. Quero que faça o seguinte: dê uma boa olhadela na inscrição e diga-me onde viu esses símbolos antes. Eu sabia que era um tiro no escuro, mas precisava tentar. Rebecca sempre tivera talento para enxergar além do óbvio. Fora ela quem havia descoberto o esconderijo de barras de chocolate do meu pai quando éramos crianças, dentro de uma velha caixa de apetrechos de pesca na garagem. Mesmo nessa ocasião, apesar de adorar doces, não tinha sugerido que comêssemos uma das barras: para ela, o simples triunfo da descoberta e de poder contar-me uma coisa sobre o meu pai que eu não soubesse já era um prémio.
Vou dar-lhe mais um minuto..., falei. Que tal me dar uns dias para perguntar por aí?, retrucou Rebecca. Posso mandar a foto para o sr. Telemakhos... Não! Não mostre essa foto a ninguém. Porquê?
Hesitei, consciente de que estava sendo irracional. Porque tem alguma coisa nessa escrita que me é muito familiar..., de um jeito meio esquisito. É como se eu enxergasse uma inscrição invisível... A verdade nos ocorreu ao mesmo tempo. O caderno da sua avó!, exclamou Rebecca com um arquejo, movimentando-se freneticamente do outro lado. Aquele que lhe deu pelo Natal... Estremeci, alarmada. Não, é impossível. Loucura. Porquê? Rebecca conhecia bem o meu calcanhar de Aquiles, mas estava agitada demais para pisar com delicadeza nele. Ela sempre disse que lhe deixaria instruções, não foi? E que as receberia quando menos esperasse. Bom, talvez seja isso. A grande chamada da avó. Quem sabe... A voz de Rebecca ergueu-se num tom desafiador quando ela com certeza se deu conta do absurdo da sugestão. Quem sabe se ela estará esperando em Amsterdão?
Duas silhuetas surgiram no horizonte tremeluzente. Era a hora mais clara e mais quente do dia, quando céu e terra se encontravam numa névoa prateada e não se conseguia distinguir um do outro. No entanto, bem devagar, à medida que avançavam pela salina plana, as duas formas tremeluzentes se materializaram em duas mulheres, uma adulta; a outra, nem tanto. Mirina e Lilli tinham passado muitos dias fora, só as duas. O objectivo da viagem era óbvio, pois todo o tipo de caça e arma se balançava nos seus ombros preso em correias de couro, e os seus passos ficavam mais velozes conforme elas se aproximavam do povoado à frente. Como a mãe vai ficar orgulhosa!, exclamou Lilli. Espero que conte a ela como eu peguei aquele coelho na arapuca. Não vou omitir nenhum detalhe, prometeu Mirina, afagando os cabelos embaraçados da irmã caçula. Talvez só aquela parte em que quase quebrou o pescoço. É..., Lilli encolheu os ombros e deu aquela danadinha lenta e engraçada que sempre dava quando ficava constrangida. É melhor não falar nisso, senão nunca mais vou poder sair convosco. Seria uma pena, não é?, indagou ela, erguendo os olhos para Mirina com um sorriso esperançoso.
Mirina aquiesceu com firmeza. Uma pena enorme. Você tem potencial para ser uma grande caçadora. Além do mais... Ela não conseguiu conter uma risadinha. É uma fonte inesgotável de diversão. Lilli fechou a cara, mas Mirina sabia que no fundo estava contente. Pequena para uma menina de 12 anos, sua irmã passara a viagem inteira tentando desesperadamente provar o próprio valor, e Mirina tivera uma grata surpresa com a sua capacidade de lidar com as dificuldades. Mesmo com fome ou cansada, Lilli nunca se recusara a cumprir nenhuma tarefa e nunca derramara uma só lágrima. Pelo menos não na sua frente. Com seis anos a mais do que Lilli e tão hábil quanto qualquer homem da mesma idade, Mirina havia considerado o seu dever ensinar à irmãzinha a arte da caça». In Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-543-0.

Cortesia de EArqueiro/JDACT