terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Arquivo Secreto do Vaticano. Coordenação Geral de José Eduardo Franco. «O sistema funcionou até aparecerem na cena cívica os seguidores (a secta) de um Ressuscitado que inaugurara um novo Eon»

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Expansão Portuguesa. Oriente
«(…) O acervo documental aqui elencado procede do fundo da Nunciatura Apostólica em Portugal, que se acha hoje no Arquivo Secreto Vaticano. Torná-lo acessível, através de indicações sumárias que remetam o investigador para novos endereços, é empresa da maior estima e momento para a historiografia portuguesa. Um dos mais promissores desses endereços seria talvez a história da resistência social indígena à redefinição da jurisdição eclesiástica nos territórios do Padroado. Consta destes volumes uma rica documentação nesse sentido, não só no âmbito diplomático, mas também na correspondência privada dos missionários e na vida social anónima. Esta é indagável, não só na sobredita correspondência, como nos pedidos de privilégios, de dispensas, de breves, de absolvição de censuras e, posto que onde menos se esperaria, em perto de uma centena de processos de inquirição sobre idoneidade ao episcopado. Além das peças documentais de menor valor informativo nesse sentido, como certidões de estudos e de ordens sacras, eles reúnem preciosos depoimentos acerca do candidato e da Sede a prover (quando não da Sede de origem do candidato, em tratando-se de transferência). Há porém, sobretudo no primeiro volume do acervo, um timbre mais altissonante em função do qual nos propomos estruturar a presente contextualização, a saber, o da missionação em contexto persecutório. Trata-se ainda, em todo o caso, de um conflito de jurisdições ou, para ir mais longe, um conflito entre sentimentos de pertença que a modernidade foi agudizando até às guerras do século XX. Vejamos como.
Subjaz ao próprio nome, e, a fortiori, à autorrepresentação, da Modernidade um programa de reposição das coordenadas filosóficas, sociais e políticas da Antiguidade. Daí a concepção moderna do passado mais próximo (um milénio inteiro, afinal) como uma era insignificante, designada em função de ambas: a idade do meio. Não cabe aqui a análise de tantas rupturas que esse espírito dito renascentista viria realmente a significar para o Ocidente. À contextualização em objecto, interessa sobretudo a consideração da vertente política e a ela prevalentemente nos referiremos. Ora, nesse aspecto, avulta à partida um traço macroscópico. A pertença do homem antigo à sua Cidade é total e exaustiva. O seu horizonte existencial e religioso, delineado por um mercado de satisfações imanentes, entre mistagogias e cultos oficiais, não se alarga além da dimensão cívica. Melhor: tende a restringir-se a essa dimensão. É por isso que o ordenamento jurídico romano não titubeia no reconhecimento do tradicional direito de optio divinitatis mas não pode abdicar do disposto em matéria cultual pela autoridade pública competente. De facto, até os irredutíveis judeus, corifeus do Deus único e transcendente, enquanto aguardavam a realização das suas promessas messiânicas, lá se iam encaixando nessa equívoca liberdade de culto. Mas, para isso, tinham que comprar, literalmente, através de um tributo, a isenção do culto público que a consciência lhes vedava. Tratando-se, para mais, de um número de isentos, praticamente contido em nítidos limites étnicos e confinado por um voluntário isolamento social, essa compra satisfazia a pretensão absolutista da Cidade antiga e sossegava, senão os povos, ao menos as autoridades. Autorizado pelo jus civile, também o Deus transcendente e revelado a Israel se tornava de algum modo um deus da Cidade, e o seu culto era por isso um culto lícito (religio licita).
O sistema funcionou até aparecerem na cena cívica os seguidores (a secta) de um Ressuscitado que inaugurara um novo Eon. Como os judeus, também eles pretendiam adorar o Deus transcendente, fora do mundo, portanto, e exterior à Cidade. Mas, à diferença deles, e com a agravante de ignorarem qualquer tranquilizadora barreira étnica e social, não podiam comprar algo que já era seu, pois as promessas messiânicas estavam cumpridas. Eram algo presente e real, e não futuro, desde que Cristo ressuscitara na carne inaugurando assim o eon ou saeculum definitivo. Para essa gente que vivia do lado de cá do fim do mundo (hujus saeculi), o horizonte absoluto da Cidade antiga ficava radicalmente relativizado. Cristo, o Primogénito de muitos (no dizer de Paulo) tornara-os Cidadãos de outra Cidade, o Céu. E, doravante, qualquer cidade mundana teria que se medir com o destino eterno do homem. Até ao ano 311, pairará sobre eles um interdito de Nero (non licet esse christianos), que os condenou por ateus». In José Eduardo Franco (Coordenação Geral) Arquivo Secreto do Vaticano,Archivio della Nunziatura in Lisbona, Centro de Estudos Damião de Góis, Projecto financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2010, POCI 2010, Esfera do Caos Editores, Lisboa, 2011, ISBN 978-989-680-032-1.

Cortesia de EsferadoCaos/JDACT