sábado, 20 de janeiro de 2018

O Retrato do Rei. Ana Miranda. «Ela deu uma gargalhada, revelando a sua garganta, a língua dentro da boca. Parou de rir tão subitamente como começara e pegou nas moedas»

Cortesia de wikipedia

O contrato da carne
«(…) Formavam-se imensas aglomerações diante das vendas e principalmente dos açougues. Os baienses preferem vender o boi no sertão, disse Tenório, pois lá custam por cabeça de quinze a trinta oitavas de ouro. Aqui só conseguem de três a cinco. Além do que, para trazer uma boiada ao Rio de Janeiro demora-se às vezes dois anos, enquanto que pelo São Francisco chega-se às Minas em apenas um mês. Vamos acabar comendo apenas carne de baleia, como nos primeiros tempos. Ninguém respeita o decreto da Coroa que estipula duzentos escravos anuais para serem vendidos nas Minas, os preços lá são muito melhores, não se vende mais nada por aqui, a não ser que um tonto se disponha a pagar como se fosse um minerador. Isso quer dizer que dentro de pouco tempo estarei arruinada? Tenório suspirou, fazendo um gesto com as mãos que significava impotência diante do irremediável. Não há nada a fazer, dona Mariana. Ela levantou-se num ímpeto. Alguma coisa pode ser feita. Vosso primo talvez possa fazer algo por vós, disse o amanuense. Ao final, ele é o governador. Dom Fernando? Não quero dever-lhe nada. Se eu pudesse ajudar-vos... Tenório andou pela sala, pensativo. Então, disse Mariana, tentando convencer a Tenório e a si mesma, se meu pai tem lavras nas Minas Gerais, casa, escravos, arrobas de ouro, retornarei rica. Poderei adquirir os doze cavalos malhados de Augusto para atrelá-los à minha estiva espanhola. Mariana devolveu ao amanuense o maço de folhas. Explicai-me o que está escrito nesses papéis. Enquanto Tenório decifrava as contas em voz alta, explicando os gastos, justificando as dívidas, trocando em números a ruína, Mariana andava de um lado a outro pensando no pai. Teria ele lhe perdoado? Quando partira, dissera-lhe que a deserdaria, que ela não era mais sua filha, que se tornara indigna de usar o nome da família.
O amanuense humedecia na língua a ponta do dedo antes de passar a página. Ele não podia estar roubando nas contas, pensou Mariana, mas talvez a bebida consumisse todos os seus esforços. Mês, Abril; balanço, mil e um; saldo positivo, seis contos de réis. Ajuste no preço de sete mil para sete mil e quinhentos réis. Isso significa; senhor Tenório. Ele parou com a leitura. Achais que ele me perdoou? Não posso afirmar, senhora. Vede isso aqui, três cavalos doentes. Gastos com estrebaria, selas. Nenhum cavalo vendido em Maio. Moscas no estrume. Será que vou encontrá-lo ainda vivo? Já vos decidistes? Pensai bem, senhora. De que servem as viandas se não nos engordam?

Tenório saiu. No pátio, conversou rapidamente com um escravo e descobriu que Valentim descera pela encosta meridional do morro do Alto, em direcção à zona agrícola do sul. Presumiu, imediatamente, onde o rapaz podia estar hospedado. O amanuense desceu a ladeira do Poço do Porteiro. Ao longe, viu um cavaleiro a trotar para o Cara de Cão, uma capa preta voando, a extremidade da arma iluminada pelo sol, o chapéu redondo à cabeça. Seguiu nessa direção. As botas de Tenório afundavam nas areias húmidas e fofas da praia; ele ofegava e suava. Para subir o morro teve que parar e descansar muitas vezes. O Cara de Cão, uma nesga de terra à entrada da barra, com edifícios velhos, uma ermida, guaritas, casa-forte, dava vista para uma grande porção da baía de São Salvador do Rio de Janeiro. Tenório parou à entrada de um edifício onde estava amarrado um cavalo com arreios de corda e mantas no lugar da sela. Maior e mais alta que as outras, a casa tinha as janelas todas fechadas e ramos na porta. Um lugar que Tenório conhecia muito bem. Entrou. Na sala havia uma rede, uma arca, uma imagem de Jesus crucificado, um candeeiro, um bufete, uma mísula, tamboretes. O chão era liso, varrido. Meretrizes, negras ou mestiças, em volta de uma mesa jogavam cartas de baralho. Tenório olhou uma a uma, rosto após rosto. Tinham algo de cansaço e tédio. Ao ver Tenório, uma delas sorriu, zombeteira. Olhai quem está aí, ela disse. As outras voltaram o rosto para ele. Que os demónios me levem, pois sou eu mesmo. Elas se desinteressaram e voltaram a jogar. Tenório aproximou-se de uma mulher bonita, de olhos amargurados, sentada numa cadeira taxeada, ao fundo da sala. Quero falar contigo, disse ele. Sem dinheiro novamente? Tenho isso aqui, Tenório mostrou umas moedas. Ela deu uma gargalhada, revelando a sua garganta, a língua dentro da boca. Parou de rir tão subitamente como começara e pegou nas moedas. Quero saber sobre um viajante que está hospedado aqui, disse Tenório». In Ana Miranda, O Retrato do Rei, Editora Schwarcs, Companhia das Letras, 1991, ISBN 978-857-164-190-7.


Cortesia de ESchwarcs/CdasLetras/JDACT