domingo, 14 de janeiro de 2018

Rosa Brava. José Manuel Saraiva. «Mas pior que as piores lembranças de uma parte do seu passado oculto, que naquela noite lhe chegavam em tropel como um sonho de miséria e horror»

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«(…) Na manhã seguinte, ainda cedo, Leonor decidiu falar com a ama para lhe pedir que nunca dissesse a ninguém o que horas antes observara. Por Deus, senhora! Da minha boca não sairá uma só palavra, prometeu a velha aia depois de se benzer e de colocar a mão direita no peito, sobre o coração. E, para ainda vincar melhor tal propósito, acrescentou: que um raio me reduza a cinzas se não cumprir o segredo que me pede. O caso, ocorrido três anos antes, aos quinze de idade, terá sido a primeira de uma série de aventuras protagonizadas por Leonor Teles, de que só mesmo Briolanja Mendes era conhecedora. Desse catálogo de episódios há a registar também o que envolveu Guilherme Vasconcelos, um belo cavaleiro de Mogadouro que, por razões nunca apuradas, passou um dia por Barcelos para visitar João Afonso Telo, acabando depois por se hospedar em sua casa por três semanas. Aí conheceu a sobrinha do conde; aí se apaixonou por ela e ela por ele.
Leonor Teles lembrava-se agora do seu encontro com Guilherme Vasconcelos e da impressão física que desde logo o moço lhe causou. Viu-o pela primeira vez na sala comum do salão nobre. Era um homem alto, distinto, de cabelo liso e preto, de pele branca e muito fina. Vestia uma camisa de seda encarnada e calças justas de cor cinzenta e preta a modelarem-lhe a perna e a coxa, e, enfiados nos pés, uns sapatos castanhos de pontas desmesuradas, conforme a moda francesa acabada de chegar naquele ano a Portugal. Presa ao cinto por um atilho podia ver-se pendente uma bolsa móvel, de seda pura, para acudir à ausência de bolsos. Dos ombros descaía-lhe uma opa larga, em tom de amarelo-torrado, de cauda muito comprida e com as mangas a tocar o solo. Ao convocar a lembrança do jovem, Leonor fez desprender um tímido sorriso não só pela festa de felicidade que dois anos antes ele lhe proporcionara, mas também por, estranhamente, não se recordar de nada sobre o que ambos disseram na hora única do primeiro encontro. Sabia descrever-lhe a imagem, sabia como o rapaz estava vestido, mas não tinha nenhuma ideia acerca do que ele lhe terá dito e ela lhe dissera. Desse tempo quase perfeito guardava, porém, a recordação admirável do momento em que se ofereceu a Guilherme Vasconcelos no quinto dia da sua estada em casa do conde.
Foi no palheiro, situado a pequena distância da zona da cozinha, do celeiro e dos currais, que os dois jovens se entregaram ao fim de uma tarde quente de Verão. O acto, testemunhado ocasionalmente por um assalariado rural que trabalhava na casa do conde, foi por ele mesmo revelado a Briolanja Mendes, que, por dever de lealdade e de servidão, o transmitiu a Leonor. A jovem ficou transida de medo e quis saber naquele preciso instante quem foi o pobretão que a viu assim, por que motivo foi ele ao palheiro naquela hora e por que não calou o segredo. Quanto à resposta a dar, e receando qualquer vindicta, a velha começou por dizer que não conhecia o homem, depois que lhe ignorava o nome, argumentando seguidamente que ele era louco. Dias mais tarde, sem se conhecerem as circunstâncias, o pobre apareceu morto ao fundo do lameiro, em frente à casa, já próximo da extensa mata que se perdia lá longe, junto à costa oceânica. Sobre este insólito caso, Leonor negou sempre, nas conversas secretas com a ama, que tivesse mandado matar o homem. Não que lhe não apetecesse, mas da vontade à concretização do acto, refutada sob jura solene por alma de seus pais, ia uma longa distância. Apesar de tudo, o falecimento do assalariado celebrou-se como uma espécie de bênção divina que, na altura, deixou a rapariga mais tranquila e Briolanja Mendes refém de um novo segredo.
Mas pior que as piores lembranças de uma parte do seu passado oculto, que naquela noite lhe chegavam em tropel como um sonho de miséria e horror, eram o presente e as perspectivas do futuro que mais alarmavam o espírito de Leonor Teles Menezes. É verdade que àquela hora de insuportável desassossego lá estava Briolanja Mendes no recato dos seus aposentos, conversando com as estrelas para colher delas as informações que lhe permitissem construir uma resposta adequada ao trágico problema da sua estimada dama. Talvez elas, amigas e feiticeiras, a ajudas sem a decifrar os enigmas propostos e lhe consentissem o poder de restituir toda a esperança a uma mulher à beira da ruptura emocional. Nessa noite, longa e fria, Leonor dormiu pouco e sonhou muito. Sonhou que Briolanja Mendes, com o auxílio dos generosos subsídios de Deus, dos anjos e dos astros, conseguira deslindar a maneira de a salvar sem dor dos braços de João Lourenço e de a conduzir à descoberta de outras paragens, onde porventura morasse o príncipe da sua vida, sereno, perfeito. E o sonho foi de tal modo revelador que, mal o dia acordou, deu um salto da cama, enfiou à pressa uns sapatos de cordovão preto, vestiu uma fraldilha em tecido de lã muito fino e uma saia comprida plissada de cetim vermelho aveludado, enrolou à cintura um sirgo e adornou-se com uma camisa branca, sob a qual dispôs dois paninhos justos ao peito para lhe sustentarem os seios. Por cima, despejou um manto de brocado carmesim». In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.

Cortesia de OdoLivro/JDACT