sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

A Fugitiva. Anais Nin. «Ela sugeria certas combinações. Era uma especialista, como um provador de luvas»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Era uma noite chuvosa, as ruas pareciam espelhos, reflectindo tudo. O basco tinha trinta francos no bolso e sentia-se rico. Tinha gente dizendo que, com o seu estilo ingénuo e tosco, ele era um grande pintor. Não percebiam que ele copiava de cartões-postais. Tinham dado os trinta francos pela última pintura. O basco estava eufórico e queria celebrar. Estava procurando uma daquelas luzinhas vermelhas que significavam prazer. Uma mulher maternal abriu a porta, mas uma mulher maternal cujos olhos frios deslocavam-se quase que imediatamente para os sapatos do homem, pois a partir deles ela julgava quanto ele podia pagar pelo prazer. A seguir, para a sua própria satisfação, os olhos repousavam por um instante nos botões da calça. Rostos não lhe interessavam. Ela passava a vida lidando exclusivamente com aquela região da anatomia dos homens. Os seus olhos grandes, ainda radiantes, tinham um jeito penetrante de olhar dentro das calças, como se pudessem avaliar o peso e o tamanho dos dotes do homem. Era um olhar profissional. Ela gostava de formar os pares com mais acuidade do que outras mães da prostituição. Ela sugeria certas combinações. Era uma especialista, como um provador de luvas. Ela conseguia medir o cliente mesmo através das calças e empenhava-se em conseguir para ele a luva perfeita, um encaixe bem-feito. Não se obtinha prazer se havia muito espaço, nem se a luva era apertada demais. Maman achava que as pessoas hoje em dia não sabiam o bastante sobre a importância do encaixe. Ela gostaria de ter disseminado o conhecimento que possuía, mas homens e mulheres estavam cada vez mais descuidados, eram menos exigentes do que ela. Hoje em dia, se um homem se encontrava flutuando dentro de uma luva larga demais, movendo-se como se dentro de um apartamento vazio, fazia o melhor que podia. Deixava o membro adejar por ali como uma bandeira, e saía sem o verdadeiro enlace apertado que aquecia as entranhas. Ou o enfiava com saliva, forçando como se estivesse tentando enfiar-se por baixo de uma porta fechada, espremido pelos arredores estreitos e encolhendo-se ainda mais só para ficar ali. E se acontecia de a garota rir folgadamente de prazer ou fingindo prazer, ele era imediatamente expelido, pois não havia espaço livre para a dilatação do riso. As pessoas estavam perdendo o conhecimento das boas combinações. Foi só depois de cravar os olhos nas calças do basco que Maman o reconheceu e sorriu. O basco, é verdade, compartilhava com Maman a paixão pelas nuances, e ela sabia que ele não era fácil de agradar. Tinha um membro caprichoso. Confrontado com uma vagina de caixa de correspondência, ele revoltava-se. Confrontado com um tubo constritivo, ele recuava. Era um connoisseur, um gourmet de porta-joias femininos. Gostava deles forrados de veludo e aconchegantes, afectuosos e aderentes. Maman deu-lhe uma olhada mais prolongada do que a normalmente destinada aos outros clientes. Ela gostava do basco, e não era por causa do perfil de nariz curto, clássico, dos olhos amendoados, do cabelo negro lustroso, do andar deslizante e suave, dos gestos casuais. Não era por causa do lenço vermelho e do boné assentado sobre a cabeça num estilo de malandro. Não era por causa dos modos sedutores com as mulheres. Era por causa do pendentif majestoso, do nobre volume, da receptividade sensível e infatigável, da afabilidade, cordialidade, expansibilidade daquele pingente. Ela jamais vira um como aquele. O basco às vezes o colocava em cima da mesa como se estivesse depositando um saco de dinheiro, dava pancadinhas com ele como se para pedir a atenção. Tirava-o para fora naturalmente, como outros homens tiram o casaco quando estão com calor. Ele dava a impressão de que a coisa não ficava à vontade trancada, confinada, que era para ser exibida, admirada.
Maman entregava-se continuamente ao hábito de olhar os dotes dos homens. Quando saíam dos urinoirs, terminando de se abotoar, ela tinha a sorte de pegar o último relance de um membro dourado, ou moreno-escuro, ou de ponta estreita, seu preferido. Nos bulevares, com frequência era gratificada com a visão de calças mal-abotoadas, e seus olhos, dotados de visão aguçada, conseguiam penetrar pela abertura velada. Melhor ainda era se ela pegava um vagabundo aliviando-se contra a parede de algum prédio, segurando o membro pensativamente na mão, como se fosse a sua última moeda de prata». In Anais Nin, A Fugitiva, L&PM Pocket, Brasil, 2012, ISBN 978-852-542-654-3.

Cortesia de L&PM/JDACT