terça-feira, 20 de março de 2018

Mariana. Susanna Kearsley. «Depois da sétima aldeia, o Tom deitou-me um olhar de soslaio acusador. Tínhamos ambos herdado a tez e as feições finamente cinzeladas da minha mãe, características da Cornualha»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Vi a casa pela primeira vez no Verão em que fiz cinco anos. A culpa foi de um poeta e do facto de a nossa visita de fim de semana, a casa de uma idosa tia favorita em Exeter, ter posto o meu pai num estado de espírito vagamente poético. Deparando-se com uma inesperada bifurcação na estrada, na viagem de regresso a casa em Oxford, ele escolheu deliberadamente a estrada da esquerda em lugar da da direita. O caminho menos trilhado, disse-nos, num tom de voz benigno e lânguido. E, tal como o poeta prometera, fez de facto toda a diferença. Para começar, perdemo-nos. De tal maneira que a minha mãe teve de guardar o mapa. As nuvens que entretanto encobriram o sol não pareciam ser mais do que uma extensão da disposição cada vez mais sombria do meu pai, que já esquecera a poesia, lugubremente vergado sobre o volante. À hora de almoço, já estava a chover torrencialmente e a minha mãe dera-nos rebuçados, a mim e ao meu irmão Tommy, numa tentativa vã de nos impedir de irritar ainda mais o meu pai, cujo mau feitio lendário estava a atingir o ponto de ruptura. Os rebuçados eram de hortelã-pimenta, com riscas cor-de-rosa e brancas, como grandes berlindes, e tão eficazes a dificultar a fala que tínhamos de tirá-los completamente da boca para falarmos um com o outro. Quando chegámos ao primeiro aglomerado de lojas e casas de aldeia, já as minhas mãos estavam pegajosas de açúcar e o peito do meu novo vestido de folhos estava manchado e encorrilhado. Nunca tive inteiramente a certeza do que levou o meu pai a parar o carro onde parou. Tenho ideia de um gato a atravessar a estrada à nossa frente, mas isso pode ter sido simplesmente fruto da imaginação de uma criança criativa e exausta. Fosse qual fosse a razão, o carro parou, o motor foi-se abaixo e na confusão que se seguiu tive o meu primeiro vislumbre esbatido da casa.
Era uma velha e banal casa rural, grande, quadrada e sólida, bastante recuada em relação à estrada, com algumas árvores mal cuidadas em redor para criar privacidade. O telhado de ardósia escura e reluzente era extremamente inclinado, juntando-se às paredes de pedra cinzenta batidas pelo tempo, a desolada monotonia das cores quebrada por duas chaminés iguais de tijolo vermelho e uma abundância de janelas largas de múltiplas vidraças com caixilhos recentemente pintados de branco. Estava a pressionar o nariz contra o vidro frio da janela do carro, esforçando-me por ter uma vista melhor, quando ao fim de umas quantas imprecações particularmente virulentas, o meu pai conseguiu pôr o motor de novo a trabalhar. A minha mãe, claramente aliviada, virou-se para trás para ver se estávamos bem. Não, Julia, implorou. Vais deixar as janelas todas sujas. Esta casa é minha, disse eu, em jeito de explicação. O meu irmão Tommy apontou para uma casa muito maior e mais imponente que surgiu à vista. Pois, mas a minha casa é aquela, contrapôs, triunfante. Para deleite dos meus pais, continuámos este jogo até chegarmos a casa, em Oxford, e a solitária casa cinzenta caiu no esquecimento. Não voltaria a vê-la durante dezassete anos.
Esse Verão, o verão em que fiz vinte e dois anos, está-me indelevelmente gravado na memória. Tinha acabado de concluir os meus estudos na escola de arte e conseguira o que parecia ser o emprego perfeito numa pequena agência de publicidade em Londres. O meu irmão Tom, três anos mais velho do que eu, chegara recentemente de Oxford com um distinto percurso académico e chocou imediatamente a família anunciando a sua intenção de seguir o sacerdócio na Igreja Anglicana. A nossa família não era especialmente religiosa, mas o Tom insistia em dizer a gracejar que, com o seu nome, não tinha muitas alternativas. Thomas Beckett! Por amor de Deus! Tinha ele brincado com a minha mãe. Que esperavas?
Para celebrar aquilo que considerávamos a chegada à idade adulta, eu e o Tom decidimos tirar umas curtas férias na costa sul do Devon, onde podíamos esquecer temporariamente os nossos pais e as responsabilidades e aproveitar o tempo anormalmente quente e soalheiro com que a Inglaterra meridional estava a ser abençoada. Não ficámos desiludidos. Passámos uma semana esplêndida refastelados na praia em Torquay e voltámos relaxados, rejuvenescidos e bronzeados. O Tom, apanhado numa vaga crescente de optimismo, nomeou-me co-piloto para a viagem de regresso. Devia ter sido mais sensato. Embora eu não seja exactamente um desastre com mapas, deixo-me distrair facilmente pela paisagem. Inevitavelmente, acabámos por nos desviar da estrada principal, atravessando desorientados o que parecia uma procissão interminável de pequenas aldeias idênticas, ligadas por uma estrada estreita, sob uma abóbada tão densa de ramagem que parecia um túnel.
Depois da sétima aldeia, o Tom deitou-me um olhar de soslaio acusador. Tínhamos ambos herdado a tez e as feições finamente cinzeladas da minha mãe, características da Cornualha, mas enquanto, no meu caso, a combinação de cabelo e olhos escuros me dava um ar mais travesso do que exótico, no caso do Tom podia parecer verdadeiramente ameaçadora quando ele queria. Onde é que achas que estamos?, perguntou ele, com perigosos bons modos. Conscienciosamente, consultei o mapa. Wiltshire, imagino, disse-lhe vivamente. Algures a meio. Bem, não podias ser mais específica. Ouve, sugeri, quando nos aproximávamos da oitava aldeia, porque é que não te deixas de casmurrices e pedes indicações no próximo pub? Francamente, Tom, és pior do que o pai… A palavra acabou num súbito guincho.
Desta vez, não foi fruto da minha imaginação. Um grande gato amarelo atravessou a correr a estrada mesmo à frente do carro. Os travões chiaram em sinal de protesto quando o Tom carregou a fundo e, depois, nem de propósito, o motor foi-se abaixo. Raios partam! Um cura não usa essa linguagem, lembrei ao meu irmão, e ele sorriu involuntariamente. Estou a gastar os últimos cartuchos, foi a sua desculpa. Rindo-me, olhei pela janela e fiquei petrificada. Não posso acreditar. Eu sei, concordou o meu irmão. É preciso ter muito azar. Abanei a cabeça. Não, Tom, olha… É a minha casa. O quê?» In Susanna Kearsley, Mariana, 1994, Edições ASA, 2013, ISBN 978-989-232-168-4.

Cortesia sde EASA/JDACT