quarta-feira, 14 de março de 2018

O Manuscrito nos Confins do Mundo. Marcello Simoni. «Na sequência dos recentes dissabores entre o bispo de Paris e a Universitas Magistrorum, a maior parte dos docentes afastara-se da Cité»

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O Signo do Sagitário. Paris, noite de 26 de Fevereiro
«(…) E nunca mais olhara para os vitrais de uma catedral com os mesmos olhos. O ininterrupto vociferar que provinha do exterior distraiu-o dos seus pensamentos. Já era tempo de se ir embora, as tarefas da jornada reclamavam a sua presença. Vestiu o hábito vermelho e o chapéu de magíster de medicina, colocou debaixo do braço uns dois volumes de que iria precisar para a lição e dirigiu-se para a porta. Depois de uma breve hesitação, decidiu deixar o suevo ali mesmo. Segundo as suas previsões, deveria ficar em estado de inconsciência até à tarde e, portanto, não iria levantar problemas. A tentação de o pôr fora de casa era fortíssima, mas o temor de que aquelas tatuagens necromantes pudessem congregar alguma atenção persuadiu-o a agir com cautela. Assim que chegou à rua, sentiu-se imergir no cintilar da terça-feira gorda. Uma imensidão de jovens corria pelas ruas entre gritos e gargalhadas, à procura de vítimas das suas brincadeiras. Aborrecido com tanto frenesim, seguiu colado às paredes para não ser envolvido em todo aquele alarido. Estava com pressa, e a ideia de atravessar meia cidade para dar a lição exacerbava o seu mau humor.
Na sequência dos recentes dissabores entre o bispo de Paris e a Universitas Magistrorum, a maior parte dos docentes afastara-se da Cité, elegendo a Abadia de Sainte-Geneviève como sede provisória do Studium. Os únicos mestres que ainda ensinavam em Notre-Dame eram os religiosos. Caminhando de cabeça baixa sob um sol invulgarmente tépido, Suger esforçou-se por temperar o seu mau humor pensando em qualquer coisa agradável. Malgrado seu, a única coisa que lhe veio à cabeça foi a pedra de draconite. Como poderia ignorá-la? Como outros médicos e cirurgiões, conhecia bem as propriedades terapêuticas das pedras. Tinha lido várias obras sobre elas, entre as quais o lapidário de Michele Psello e o de Marbodo de Rennes. Tempos atrás, um beneditino de Orford até lhe mostrara a sua colecção de pedras curativas, provenientes, na sua maioria, do interior de animais: a chelidonia, retirada da cabeça das andorinhas e capaz de curar as inflamações dos olhos; a liguriena, extraída da vesícula urinária do lince, um remédio óptimo para as dores de estômago e para a icterícia; a heyena, proveniente dos bolbos oculares da iena, benéfica, se colocada debaixo da língua; por fim, a margarita, escondida nas conchas, e o panthero, obtido das vísceras dos grandes felinos.
Mas nenhuma se assemelhava à draconite. Se Suger conseguisse obtê-la e se escrevesse um tratado médico sobre as suas virtudes curativas, ganharia, sem sombra de dúvida, uma posição de prestígio junto da escola do Capítulo. Apressou-se a afastar aquelas fantasias, esquivou-se, mal-humorado, a um grupo de peregrinos e meteu pelo bairro latino. Ali, as festas do Carnaval assumiam proporções surreais. Por todo o lado apareciam jovens vestidos de mulheres, de ursos e de selvagens. Uns dançavam, outros corriam, montados em mulas ou em carros grotescos e desgovernados, lançando verduras podres a quem passava. Era de esperar. A maior parte dos alunos que chegavam a Paris para frequentar o Studium alinhava naquelas borgas. O facto de se encontrarem sob a asa tutelar do Capítulo, consequentemente imunes a sanções civis, tornava-os ainda mais audazes quanto à transgressão das regras.
O médico passou por toda aquela confusão sem ser molestado, as vestes de magíster protegiam-no de ser alvo daquelas brincadeiras. Assim, foi recebendo diversas vénias e cumprimentos respeitosos, até encontrar um grupo de rapazes reunidos em torno de um jovem alto e com bom aspecto. Era Bernard, o seu melhor aluno. Adivinhando qualquer sarilho, estugou o passo na sua direcção. O estudante esboçou uma saudação impaciente, enquanto os companheiros desapareciam, apressados. Assim que se aproximou dele, Suger reparou que tinha um olho negro e um lábio ferido. Meu rapaz, posso saber o que te aconteceu? O jovem coçou a cabeça e revolveu o cabelo, muito preto e forte. Bernard era um dos poucos estudantes que não usavam tonsura. Ao contrário dos seus coetâneos, que a encaravam e usavam como sinal de protecção do Capítulo, ele achava-a uma humilhação. Nada de grave, magíster. Nada de grave, dizes?, rebateu o médico. A Quaresma está aí e com ela a determinatio. Estás lembrado? É o exame que terás de fazer para te tornares bacharel. Com essa cara, farás uma bela figura! E o mesmo me acontecerá, como teu professor». In Marcello Simoni, O Manuscrito nos Confins do Mundo, 2013, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-169-7.

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